segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Você nunca esteve realmente aqui (You were never really here)




Decidi escrever sobre esse filme mais pelo protagonista e menos pelo filme (não que o filme seja ruim, não é). A atuação de Joaquim Phoenix é brilhante!


ATENÇÃO:
Possivelmente terão spoilers!


Você nunca esteve realmente aqui é um filme que fala de um homem - Joe - destruído por um passado angustiante que aos poucos vamos entendendo e passa a ser um assassino de aluguel. Como se dá essa passagem não é mostrado.

Martelos que Joe compra num mercado


E não é qualquer assassino, ele mata pessoas (homens em sua maioria) que participam do mercado de exploração sexual de meninas. É, o filme não é nada leve e muito menos tranquilo. É pesado. Nem precisaria mostrar as cenas de violência que mostra (e ainda assim, nos poupa de muitas outras) para sentir o peso. O olhar, os flashes e os sufocamentos de Joe nos mostram que ele é um cara atormentado.




Os constantes sufocamentos (sim, ele se sufoca com sacos plásticos ou com toalhas no rosto, tenta se afogar) são demonstrações de flerte com o suicídio, na minha opinião. Ao mesmo tempo em que ele deseja a morte, algo dá sentido para continuar vivendo. Seria a sua mãe? Aquela com quem compartilhou um passado de sofrimento por causa do pai? (Percebam que o pai aparece com um martelo na mão... que é a arma que Joe usa para executar seus inimigos. Parece que a herança de seu pai - a violência e o martelo - passam para Joe). Seria o fato de usar a sua "brutalidade" (ele é admirado pelos clientes por ser brutal) para salvar meninas? Quer dizer, o seu lado "mau" teria alguma utilidade para fazer o bem. Sim, isso poderia dar algum sentido para a vida.

O passado foi tão cruel com Joe que forjou um homem sem muitas expectativas, duro, mas com alguma sensibilidade. Vejam como ele trata a mãe (não é com doçura, mas tem cuidado e preocupação) e ele salva meninas num meio altamente arriscado. É claro, ele recebe dinheiro para essas missões, não é gratuito. Joe não se faz de herói, mas ele poderia ter escolhido outras missões... É uma fonte de renda, mas porque ele escolheu exatamente esse tipo de trabalho? Por que escolheu resgatar meninas do mercado de exploração sexual?



É um filme com poucos diálogos. Joe tem uma voz soturna, é um homem frio, o seu semblante é tenso e triste, o seu corpo é grande e com muitas marcas.
O único momento em que Joe esboça um sorriso (se não me falhe a memória) é numa cena insólita onde ele e um agente da polícia estão no chão da cozinha, o policial ferido, e os dois cantam juntos uma música romântica. Aliás, o filme é entrecortado por isso: cenas de violência e no fundo uma canção romântica.
Seria a vida algo bizarro assim? Momentos de violência, crueldade, perdas, mas com a possibilidade de ouvir canções?

A atuação de Joaquim Phoenix é formidável! Que ator!

Reparem no olhar dessa menina!


É um filme que foge dos clichês. Em alguns momentos, principalmente no início, fica confuso, mas aos poucos as coisas vão se encaixando.
Quis me concentrar mais no perfil psicológico do protagonista e menos no enredo e em outros aspectos técnicos (como se eu soubesse, rs). Nem vou debater a violência que é o mercado da exploração sexual, ainda mais envolvendo meninas, e os grandes esquemas de poder que cercam esse mercado. Fora as perdas que Joe vai sofrendo no caminho...

Um filme denso, com um personagem profundo e comovente, entrega um roteiro violento e com um final surpreendente.

O final me passou uma mensagem do tipo: estamos todos perdidos e talvez nos acostumamos a estarmos perdidos. Para uns, a vida é estar perdido solitariamente, para outros estar perdido junto dê algum sentido para viver. 


Obs: Outro assassino profissional respeitável é o psicopata total no filme Onde os fracos não têm vez. Javier Barden excepcional como sempre!

Obs2: e o título do filme, o que acharam?

Nota: 9

terça-feira, 15 de maio de 2018

A Pedra da Paciência (Syngué Sabour)



Ambientado no Afeganistão em meio a um conflito armado, uma jovem mulher passa os dias conversando e se confessando ao marido que está em coma num quarto decadente. A vida da família é precária, podemos entender que não tem comida nem água para ela e para as crianças, nem eletricidade, nada.
Os personagens não têm nome, a mulher e as duas filhas não têm importância, demonstrando o que elas representam naquela sociedade; já o homem, tido como herói de batalha, jaz inerte, abandonado pela família de origem.

O que essa mulher significou pra mim foi muito marcante. Ela é a mulher devota às tradições: dedica abnegadamente cuidados ao marido sem questionamentos, aceitando passivamente aquelas condições de extremo risco para ela e para as filhas. Até que ela, pelo desespero, começa a questionar as coisas: por que a família dele os abandonou? Ele não era o "herói"?
E ela vai relembrando de como ela sempre foi tratada por ele e pela família, com indiferença por parte dele e com desconfiança pela sogra. Ela lembra que ele sequer a olhou depois que se casaram. Relembra da própria família e do pai que beijava as codornas mas nunca demonstrou nenhum afeto pelas filhas e esposa, só as espancava. Parece que ela nunca recebeu amor nem respeito de ninguém até aquele momento.

É visível o sofrimento e o desespero dessa jovem mulher que não vai suportando aquela situação: a família dele os abandona, o marido está inerte e Deus não as protege.




Ela sai em busca da tia, a única com quem tem contato. Essa tia é prostituta e é a personagem mais sábia do filme. Ela é quem acolhe a sobrinha e quem conta a história sobre A Pedra da Paciência que se trata de um conto onde diz que quando encontramos uma pedra podemos contar todos os nossos segredos, a pedra vai escutar tudo, e em algum momento essa pedra estoura: significa que a pessoa que contou tudo está livre. 
Esse conto dá um sentido para a jovem mulher entender o que estava vivendo: o marido só estava vivo para que ela lhe contasse todos os seus segredos, era a pedra dela.

Outra passagem memorável é quando a jovem mulher e a tia estão conversando sobre Maomé e uma personagem feminina que consta no Alcorão (não lembro do nome) e a tia conclui que profeta mesmo deveria ser essa mulher. 


A tia e a jovem mulher

Então, a jovem mulher vai vivendo um processo de mudança, da mulher submissa e adequada às tradições que a oprimiam e a submetia e passa para uma mulher questionadora e desejante; de objeto se torna sujeito. 

Passa então a falar o que pensa, a contar como se sente e a dizer o que quer. O interessante é vê-la em conflito o tempo todo, a mulher submissa e a mulher questionadora aparecem o tempo todo, ela vive a transição. Ora ela teme pelo marido, ora ela o xinga; ora ela deseja ser amada, ora, com culpa, acha que está endemoniada.

Como ápice do filme, ela revela como concebeu as duas filhas. Nesse momento ela está de cabelos soltos e batom, ali, está assentada a mulher desejante e desafiadora de um sistema patriarcal, já não teme, o afronta. Se sente livre.




A atuação da atriz que faz a jovem mulher é brilhante!!! Em muitas cenas, quando ela está com o lenço na cabeça, me lembrou uma imagem de uma santa. E isso diz um pouco dela também, para ser santa tem que haver sacrifícios e milagres... Quer afronta maior, num sistema patriarcal, uma mulher se colocar no lugar de um profeta (pois profeta é aquele que tem o dom dos milagres)?!







O cenário decadente transmite um pouco o clima de tensão, de desesperança, de que as coisas não vão mudar... a cidade tem destroços por toda parte, perfurações de balas pelas paredes, barulhos de bombas e trocas de tiros, os combatentes aterrorizando os moradores (exceto o jovem gago...).

Filme essencial para pensar sobre formas de empoderamento mesmo em sistemas autoritários e silenciadores e em meio à precariedade e à pobreza.

Nota: 10