sábado, 19 de dezembro de 2015

A caça (Jagten)


A Caça é um filme dinamarquês lançado em 2012 e trata-se de um homem, Lucas, que é acusado por uma criança, Klara, de 5 anos, de ter mostrado "suas partes íntimas" para ela. O contexto: ele é professor de uma creche, ela é uma de suas alunas e filha do seu melhor amigo.
Até aqui o enredo já basta para ser tenso, a pedofilia é um crime muito grave, pela relação íntima que Lucas tem com a família da criança e mexe com aquilo de mais bonito que a criança representa simbolicamente: pueril, inocência, pureza.

E tem mais.

Lucas está prestes a ter a guarda do filho e pra isso (e para outras coisas óbvias) ter um emprego é essencial. Ele mora numa pequena cidade e está se envolvendo com uma mulher, colega de trabalho na creche.

Alguns acontecimentos são importantes para interpretar a denúncia que ela faz.

Klara é uma personagem interessante. O filme parece nos mostrar que a família de Klara está passando por alguns problemas comuns de qualquer casal. Percebi isso em uma ocasião quando ela estava em frente à casa esperando que os pais a levassem para a creche enquanto o casal discutia, Lucas passa e decide levá-la. Quando ele entra na casa para avisar, o pai de Klara pergunta onde ela estava, ou seja, o pai não sabia onde estava a própria filha.


Klara tem um irmão adolescente e numa ocasião um amigo dele mostra uma imagem pornográfica e faz um comentário.

Num outro momento do filme, na creche, Klara beija Lucas na boca e entrega uma carta com um coração dentro. Lucas, diante disso, tenta conversar com ela, sem sucesso.

* * *

É interessante observar alguns pontos do filme a partir da denúncia.

O modo como tudo foi manejado me pareceu um desastre! Quando a diretora da creche chama um "especialista" para conversar com Klara ele faz perguntas inapropriadas e sem qualquer cuidado com a criança (tanto é que a diretora passa mal durante o inquérito).


A falta de sigilo com o andar das coisas de modo a gerar uma exclusão e punição severa da comunidade contra Lucas e seu filho.

E a falta de chance de defesa de Lucas contra a acusação, de acordo com a diretora: "criança não mente" e assumiu a denúncia como verdade sem averiguar todos os detalhes. Lucas é um professor querido pelos alunos, dá pra perceber que Klara repete o mesmo comentário feito pelo amigo do irmão e parece que ela desenvolveu um amor por Lucas. É o que o filme sugere.

Lucas não perde o controle da situação, no entanto sucumbe à depressão e ao isolamento como é de se esperar em uma situação como essa.
Lucas perde tudo: amigos, o emprego, a guarda do seu filho, a namorada, a confiança das pessoas. O único que extravasa é seu filho, e para ser sincera, me senti contemplada quando ele o fez. rs!


Algumas reflexões:

Crianças não mentem? Não seria uma fantasia da Klara? As crianças são totalmente puras e inocentes sempre?

Quando terminei de assistir o filme entendi que Lucas era inocente o tempo todo, mas e se realmente aconteceu o abuso?? Se sim, o filme toma outro rumo...
Ele sendo inocente sentimos dor ao vê-lo sendo perseguido e execrado, mas sendo ele culpado, faz todo o sentido. É inconcebível a ideia do abusador viver próximo da vítima, mas sendo inocente faz sentido que seja perdoado por tantas perdas que esse evento gerou na vida dele.

E quando o pai da criança, melhor amigo de Lucas, ao mesmo tempo em que acredita na filha, sente a perda do amigo?
São situações-dilemas que colocam sempre uma dúvida. Não existe uma resposta fácil para elas.

O filme é pesado tanto pelo suposto abuso como também pela crueldade imposta a Lucas. O filme não mostra nenhuma cena que sugira a pedofilia, mas é permeado pelo clima de tensão permanente porque PODE acontecer alguma coisa, tanto por parte de Lucas como por parte das pessoas que moram na cidade. Parece que a qualquer momento a bomba vai explodir. A cena da igreja, durante a missa de Natal, é altamente tensa. Uma cena sublime nas interpretações e para mim o ponto auge.
Detalhe que na cena final do filme, durante uma caçada, Lucas decide não matar o veado. Talvez uma metáfora pra dizer que quem era a caça da vez não era o animal, mas ele próprio.


As interpretações são excelentes! A história com todos os seus dilemas e tratando de um assunto delicado não deixa a desejar. Filme para incomodar e refletir.

Nota: 10

OBS: A Caça me lembrou outro filme incômodo e tenso chamado O Lenhador.


quarta-feira, 4 de março de 2015

O jardim das palavras & A árvore do amor

A árvore do amor

O jardim das palavras

Vi os dois filmes em dias seguidos e não pude deixar de notar as coincidências surpreendentes!



O jardim das palavras é uma animação japonesa de 2013 que nos presenteia com uma belíssima estética e trilha sonora. É muito bonita.
Fala do encontro inusitado de um casal - um colegial que pretende ser sapateiro e uma mulher misteriosa - num jardim japonês público em dias chuvosos pela manhã.

"Dias de chuva traz um pouco o cheiro do céu".

Essa fala de Takao, o estudante, é de uma delicadeza e sensibilidade que nos é mostrada ao longo da animação. No jardim ele vai para desenhar modelos de sapato, ainda é um iniciante. Ela, Yukino, leva latas de cerveja e chocolate e tem um olhar distante e triste, além de ler e recitar poemas (acho que era um poema).
Esse encontro vai se desenvolvendo a ponto de ambos torcerem pela chuva (para se reencontrarem) e se apaixonam.
A animação tem tomadas de cenas belíssimas, sempre mostrando os sapatos que Yukino usa, além de seus pés.
É uma paixão inocente e libertadora. Libertadora em vários sentidos. Ela se apresenta triste e "desleixada", a casa é uma bagunça, é desajeitada em preparar sua própria comida; com o passar dos encontros o filme nos mostra que há uma mudança: agora ela quebra os ovos sem derramar! rs! Mostra um cuidado de si que antes não havia.
Takao é um menino que estuda, trabalha muito e ainda se dedica ao ofício de sapateiro. Na cena final, ambos entram numa catarse libertadora, mas ainda assim, inocente.

Obs: após os créditos, tem cenas extras!


A árvore do amor é um filme chinês de 2010. Nos mostra o período da Revolução Cultural Chinesa (déc. 60, 70) onde uma estudante, Jing, é enviada para uma reeducação com os camponeses e lá conhece Sun, mais velho que ela e nasce um amor pueril, extremamente inocente. A família dela é perseguida politicamente e ela e a mãe, para sobreviverem, precisam seguir estritamente as normas e não cometerem erros.
Jing parece ser muito jovem, conhece pouco ou quase nada da vida, é muito tímida; Sun, um rapaz sorridente, trabalha no departamento de geologia do exército, a acompanha à distância, a trata com muito carinho e cuidado.
É engraçado ver um amor tão inocente assim. Quase não existe o toque, Jing não o encara, as "aventuras" proibidas são tão puras... Há uma total contenção dos sentimentos.

A atuação da atriz que faz a menina é incrível! Os dois protagonistas são lindos.





As coincidências.

Ambos os filmes mostram o amor entre uma pessoa muito jovem com uma pessoa mais velha.
Os dois filmes têm um cenário incrível, bucólico.
A referência aos pés femininos aparecem nos dois: quando Takao vai tirar as medidas dos pés de Yukino e quando Sun lava e cuida das feridas nos pés de Jing.
E o que mais me chamou a atenção: a inocência do amor. No A árvore do amor, mesmo no final angustiante, Jing não toca em Sun. Ela chora, mas não o abraça, não o beija. O mesmo acontece no O jardim das palavras, há uma inocência infantil e ao mesmo tempo madura. Em ambos os filmes não há sedução, erotização, "cenas quentes", nada disso, tem outra coisa. Acho que o nosso tempo nos fez esquecer que o amor pode nascer da pureza, do olhar, do cuidado verdadeiro com o outro.

quem assistiu o filme, sabe que essa imagem é tocante no final!


Tiveram coisas que não gostei nos dois filmes, mas me ganharam pela beleza.


Nota para O jardim das palavras: 8.
Nota para A árvore do amor: 7.


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Relatos Selvagens (Relatos Salvajes)


O filme é um conjunto de 6 histórias onde o fio que os conecta é o extravasamento dos limites humanos. Até onde você acha que iria numa situação de crise? Ou, até onde você gostaria de ultrapassar todos os seus limites para "fazer justiça"?

Os personagens vivem esse dilema e são levados pelas emoções totalmente. Acho que a única história em que a personagem racionaliza o que deve fazer é a história do bar e o mafioso. Os demais personagens não pensam na ética dos seus atos, mas sim, em fazer "justiça" com as próprias mãos que beiram o irracionalismo e a loucura.



Todas as histórias são brilhantes e incríveis! A história que mais me cativou foi a do casamento, sem dúvidas. Todas as histórias valem uma análise aprofundada, porque merecem, mas vou me ater à última.


O que você acha que faria se descobrisse na sua festa de casamento que seu/sua noivo/a a/o trai?

A noiva em questão descobre que o seu noivo a trai, e a amante está lá, na festa. Adiante segue-se uma sequência de humilhações e a festa vira uma cena de espetáculo que é ao mesmo tempo trágica e engraçada. O absurdo nos choca mas também é enfadonho, a gente ri. Esse é um outro grande trunfo do filme, fala-se das desgraças e das irracionalidades humanas (por vezes, justificáveis) que muitas vezes são cômicas, porque beiram o absurdo. O episódio do carro onde dois homens brigam violentamente porque tudo começou com uma "ofensa de trânsito" é exemplo dessa ironia: o filme termina como se fosse um crime passional! Pareceu que o ódio os uniu. Olha o paradoxo!



Voltando ao episódio do casamento. A noiva que parecia ingênua e desinteressante (achei que ela estava "brega" com aquela roupa de noiva, o cabelo, sem maquiagem) vai se transformando numa mulher muito poderosa. A loucura a potencializa. Acho até que para o final do episódio ela está mais bonita, com os cabelos soltos e despenteados, mais viva. O noivo vai sofrendo, as famílias em choque, as amigas em transe. Parece um campo de guerra depois da batalha: pessoas passando mal, médicos atendendo. Até que o noivo também chega ao seu limite e depois de passar por toda a humilhação e a noiva depois do combate e tendo ostentado a humilhação da traição do modo como foi, se entregam para aquele final esplendoroso: o casal está quite.

O filme é excelente, as atuações são brilhantes!

O filme me lembrou muito os de Almodóvar pelo absurdo dos desdobramentos e pela trilha sonora "inusitada" em alguns momentos. O episódio do avião, o primeiro, me lembrou muito Os Amantes Passageiros deste diretor. É absurdo, é catastrófico e hilário!

Ricardo Darín, como bem é seu perfil, está num episódio político. Um cidadão que fica preso numa rede burocrática e corrupta sem saída. E o contrassenso é que o personagem dele alcança no desfecho muito daquilo que perdeu (por causa da multa) e de quando era uma pessoa "normal". Ele está preso, mas é famoso ("Bombito"), tem o apreço de sua família e amigos.


A única história da qual achei trágica do início ao fim foi a do jovem riquinho que atropela e mata uma grávida e a família tenta "resolver" aos seus modos. Realidade do Brasil, é uma história que sabemos que acontece sempre: quem tem muito dinheiro consegue manipular os fatos. O impressionante é que a dimensão humana da tragédia não entra no jogo, e o destino das pessoas e da "verdade" são decididas por uma troca comercial, onde o que está em jogo são os interesses financeiros e o "nome" da família "de bem". Ética e justiça nesse episódio absolutamente não existem, o valor da vida, ali, não existe. Num momento crítico de estresse, em meio à negociação, o pai da família fala que o filho é quem deveria se entregar para a polícia, mas claro, isso foi só um desatino, o dinheiro apaziguou tudo no final.

Nota: 10.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Babadook


Babadook é um filme de suspense tradicional: as pessoas começam a ver / sentir uma criatura dentro de casa. Começa pela criança e depois a mãe.
Diferentemente de filmes do gênero, onde, ao longo da história temos pistas da origem do sobrenatural, Babadook não tem nenhuma explicação. Não sabemos se é um espírito, uma maldição, se é o Diabo, o que pretende, mas é do mal.

Logo que assisti esse filme fiz uma análise, passado alguns dias surgiram outras interpretações. Três ao todo!

Antes uma pequena sinopse para quem não viu.
Moram numa casa, a mãe Amélia e o filho Samuel (deve ter seus 9, 10 anos). Samuel é uma criança muito agitada, ele é expulso da escola e começa a ser mal quisto pelas pessoas. A mãe, visivelmente cansada, trabalha num asilo acompanhando idosos.
Uma tragédia marca essa família - a morte do marido / pai acontece no dia do nascimento do filho.
Samuel tem pesadelos todos os dias e a mãe mal consegue dormir; até que ele começa a falar de um tal de Babadook e acha um livro "infantil" no estilo "Babadook vai te pegar". E o tormento começa. A mãe passa a não dormir mais, a ver a tal criatura, a perder o controle de si e do filho, a ficar estranha...a tal ponto de ameaçar o próprio filho.




CONTÊM SPOILERS!!!


Interpretação 1:
Babadook é real, apareceu por acaso, atormenta a família e pela coragem de Amélia, afugenta e trancafia a coisa no porão. Ok. Filme tradicional do gênero com um final diferente.

Interpretação 2:
Babadook é uma fantasia de Samuel. Ao longo do filme, Amélia não suporta o cansaço e o descontrole do filho e começa a medicá-lo para ele dormir. Samuel tinha pavor de perder a mãe e estava tendo problemas de socialização. Brigava com outras crianças, era provocado por elas e reagia agressivamente. Não seria o Babadook uma grande fantasia (estava sendo dopado) de forma que fosse mais suportável lidar com a perda do pai, o sofrimento da mãe (que também sofria o luto) e com as provocações? Assim, a mãe seria uma "heroína" para ele, o manteria seguro num mundo muito ameaçador.
Essa hipótese pode ser sustentada por várias passagens do filme.



Interpretação 3:
Babadook é uma metáfora do desespero humano. Me interessa mais essa hipótese.
Sendo o Babadook uma metáfora, ele é real e irreal. Existe para quem vive a situação de desespero e não existe para quem está fora.
Não é coincidência que Babadook "aparece" dias antes do aniversário de Samuel e de falecimento do marido / pai. É com a iminência da segunda data que Babadook faz sentido. Ele seria o desespero dessa família, o medo, o luto da morte e a não recomposição da vida da família.
Amélia não superou a morte do marido, Samuel não dorme porque tem pesadelos e Babadook surge como uma rememória do passado desastroso e como ainda pode desestruturar aquelas pessoas.
Babadook possui Amélia, a torna agressiva e hostil. Demonstrando sua fragilidade diante do medo que devasta sua vida.

Babadook é caricato, lembra um personagem de desenho animado, feito de papel. Amélia, numa de suas noites insones, assistindo tv, o vê na tela em filmes em preto e branco e em desenho animado. Não seria Babadook uma criação de seu próprio temor?

Por fim, ela afugenta a criatura para proteger seu filho que se esconde no porão. No clímax do filme, onde tem o confronto direto de Amélia e a criatura, Babadook se traveste do marido dela e chama pelo filho. Será que no auge da sua depressão e medo, ela estaria disposta a matar seu filho imaginando um lugar melhor para ele? Ao afugentá-lo, ela decide viver e é como se ela assumisse o controle sobre o medo, que a ameaça, que está ali, bem perto dela, ora personificado como monstro, ora como o marido. Há um processo de expurgação. Parece que os medos e as lembranças ruins sempre estarão conosco, muito próximas, inclusive fazem parte das nossas vidas, mas como lidamos com elas?

A interpretação da atriz que faz Amélia e do ator-mirim são excelentes!

Nota: 8.