terça-feira, 15 de maio de 2018

A Pedra da Paciência (Syngué Sabour)



Ambientado no Afeganistão em meio a um conflito armado, uma jovem mulher passa os dias conversando e se confessando ao marido que está em coma num quarto decadente. A vida da família é precária, podemos entender que não tem comida nem água para ela e para as crianças, nem eletricidade, nada.
Os personagens não têm nome, a mulher e as duas filhas não têm importância, demonstrando o que elas representam naquela sociedade; já o homem, tido como herói de batalha, jaz inerte, abandonado pela família de origem.

O que essa mulher significou pra mim foi muito marcante. Ela é a mulher devota às tradições: dedica abnegadamente cuidados ao marido sem questionamentos, aceitando passivamente aquelas condições de extremo risco para ela e para as filhas. Até que ela, pelo desespero, começa a questionar as coisas: por que a família dele os abandonou? Ele não era o "herói"?
E ela vai relembrando de como ela sempre foi tratada por ele e pela família, com indiferença por parte dele e com desconfiança pela sogra. Ela lembra que ele sequer a olhou depois que se casaram. Relembra da própria família e do pai que beijava as codornas mas nunca demonstrou nenhum afeto pelas filhas e esposa, só as espancava. Parece que ela nunca recebeu amor nem respeito de ninguém até aquele momento.

É visível o sofrimento e o desespero dessa jovem mulher que não vai suportando aquela situação: a família dele os abandona, o marido está inerte e Deus não as protege.




Ela sai em busca da tia, a única com quem tem contato. Essa tia é prostituta e é a personagem mais sábia do filme. Ela é quem acolhe a sobrinha e quem conta a história sobre A Pedra da Paciência que se trata de um conto onde diz que quando encontramos uma pedra podemos contar todos os nossos segredos, a pedra vai escutar tudo, e em algum momento essa pedra estoura: significa que a pessoa que contou tudo está livre. 
Esse conto dá um sentido para a jovem mulher entender o que estava vivendo: o marido só estava vivo para que ela lhe contasse todos os seus segredos, era a pedra dela.

Outra passagem memorável é quando a jovem mulher e a tia estão conversando sobre Maomé e uma personagem feminina que consta no Alcorão (não lembro do nome) e a tia conclui que profeta mesmo deveria ser essa mulher. 


A tia e a jovem mulher

Então, a jovem mulher vai vivendo um processo de mudança, da mulher submissa e adequada às tradições que a oprimiam e a submetia e passa para uma mulher questionadora e desejante; de objeto se torna sujeito. 

Passa então a falar o que pensa, a contar como se sente e a dizer o que quer. O interessante é vê-la em conflito o tempo todo, a mulher submissa e a mulher questionadora aparecem o tempo todo, ela vive a transição. Ora ela teme pelo marido, ora ela o xinga; ora ela deseja ser amada, ora, com culpa, acha que está endemoniada.

Como ápice do filme, ela revela como concebeu as duas filhas. Nesse momento ela está de cabelos soltos e batom, ali, está assentada a mulher desejante e desafiadora de um sistema patriarcal, já não teme, o afronta. Se sente livre.




A atuação da atriz que faz a jovem mulher é brilhante!!! Em muitas cenas, quando ela está com o lenço na cabeça, me lembrou uma imagem de uma santa. E isso diz um pouco dela também, para ser santa tem que haver sacrifícios e milagres... Quer afronta maior, num sistema patriarcal, uma mulher se colocar no lugar de um profeta (pois profeta é aquele que tem o dom dos milagres)?!







O cenário decadente transmite um pouco o clima de tensão, de desesperança, de que as coisas não vão mudar... a cidade tem destroços por toda parte, perfurações de balas pelas paredes, barulhos de bombas e trocas de tiros, os combatentes aterrorizando os moradores (exceto o jovem gago...).

Filme essencial para pensar sobre formas de empoderamento mesmo em sistemas autoritários e silenciadores e em meio à precariedade e à pobreza.

Nota: 10